quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Roteiro em que "nada acontece"

Sempre que estudamos roteiro, assistimos a palestras ou lemos livros didáticos sobre o assunto, aprendemos que, independentemente de receitas ou gêneros, os personagens precisam sofrer alguma transformação (podem ser várias até) e a história precisa causar no espectador esta sensação.

Não escrevo este post para discorrer sobre a fórmula básica da construção de um personagem ou do primeiro turning point da trama. O protagonista depende da empatia do público para alcançar a transformação. As regrinhas do roteiro cinematográfico de Hollywood ditam que você precisa enchê-lo de falhas para que supere no desenlace e chegue à resolução num processo de transformação quase concluído.

Mas isso não significa que você precise seguir a cartilha. Não é preciso também consertar todas as falhas dos seus protagonistas e fazê-lo superar barreiras incomensuráveis para que reconheçamos a evolução do personagem.

A solução é trabalhar a empatia do personagem, criar interesse em sua rotina, seu dia a dia, esconder seus pensamentos em expressões e permitir que o próprio espectador o desvende. Esta não é uma tarefa fácil, até porque não há um guia para este tipo de desafio, apenas referências. O resto fica a cargo da engenhosidade do roteirista em criá-lo e largá-lo neste mundo inóspito da ficção.

Roteiros como esses, em que a transformação é gradativa, paulatina e pode ser muito sutil pode ser grosseiramente classificado como um roteiro em que "nada acontece". Diz-se isto devido à falta de uma motivação clara para a jornada do personagem.

Escrevo este texto inspirado em dois filmes que assisti recentemente e em que "nada acontece": Café Lumière, na última sessão da mostra do cineasta taiwanês Hou Hsiao-Hsien, encerrada domingo passado no CCBB Brasília; e Transeunte, de Eryk Rocha, filho de Glauber, que levou o prêmio da crítica no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro ano passado.

Começo pelo primeiro, que vi depois:

Hsiao-Hsien apresenta-nos Yoko, uma jovem japonesa de idade universitária. Ela se encontra com um amigo numa loja de livros e discos e fala de um compositor taiwanês. Ele a entrega CDs de Jiang Wen-Ye. Anda de metrô, trem, vai para casa.

Não há obstáculos ou desafios propostos a Yoko. Mas queremos saber para onde vai esta garota, o que faz,  porque anda tanto. Ela então vai à casa dos pais (é uma viagem consideravelmente longa). Ela revela à sua mãe: "Estou grávida. Mas fique tranquila porque não vou me casar. Posso cuidar sozinha dele". A mãe não diz nada e no dia seguinte comenta com o marido: o que vamos fazer?

E Yoko volta à sua rotina diária. Só que agora sabemos que ela está grávida. Ela não faz nada de muito diferente do que fazia. O espectador a olhará de forma diferente. Está curioso. Afinal, quem é o pai? Porque ela tanto anda pela cidade, tomando vários trens? Ela está grávida, não pode exigir tanto de si. Então descobrimos que este é o seu trabalho: percorrer lugares em busca de informações sobre o tal compositor, sobre quem ela escreve uma biografia.

Nada é dito, são apenas ações.

Costumo ver em filmes silenciosos como este (também Transeunte, de qual falo a seguir) o melhor exercício que um roteirista pode fazer no início de sua carreira. Ação é o mínimo necessário e o mais importante do roteiro.

Transeunte é um pouco mais radical neste sentido do silêncio. Tem raríssimos diálogos. Expedito é um senhor aposentado, flamenguista roxo. Vive só, com seu radinho de pilha pendurado no ouvido. E é muito incômodo atravessar os primeiros minutos da trajetória do personagem sem vê-lo se relacionar com outras pessoas. Nada acontece, mas a angústia de vê-lo nesta solidão é o suficiente para ganhar o espectador. Afinal, queremos vê-lo socializar-se. Em algum momento ele chega a um bar com música ao vivo. Mas senta só. Outros clientes são lembrados. Ele não existe.

Quando uma sobrinha toca sua campainha, com um bolo na mão e desejando-o parabéns, há um breve consolo, o espectador fica aliviado por vê-lo ter alguma importância no mundo. Mas ela o deixa em minutos para voltar ao namorado. Volta a solidão. Em seguida, ele vai ao Maracanã torcer pelo Flamengo. O time ganha. Há muita gente em volta, mais um alívio. E, logo, a solidão.

Expedito, em suas andanças pela cidade, depara-se com uma loja de óculos escuros. Prova alguns, dá um belo sorriso e recupera sua autoestima. Eis a transformação do personagem. Agora, ele pode andar de cabeça erguida. Ao fim de sua jornada, Expedito volta àquele bar. É convidado a cantar a próxima música na roda da seresta. Ganha cumprimentos, é aplaudido, recobra a importância que outrora tivera.

Bastaram-se ações.

A dica do dia, portanto, é a seguinte:

Ao escrever o roteiro, esqueça diálogos, transições, cenas, descrições. Escreva primeiramente as ações. Faça-as eficazes. É aí que você descobrirá seu personagem. Lembre-se: o personagem precisa dialogar com o meio em que vive, como a Yoko, aos poucos nos fazendo conhecê-la; ou Expedito, aos poucos se fazendo conhecer-se.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Roteiro do cinema experimental

Quando falamos em roteiro cinematográfico, pensamos em Syd Field, regras, padrões, normatizações, formatações e outros ões pertinentes à técnica do craft. Mas o roteiro não deve, a rigor, obedecer ao manual. Opa! Comecei o blog apresentando a vocês o roteiro como ofício técnico e agora o liberto dessa amarra? Não. Quero lembrar que nem todo o filme depende do roteiro como forma, e permite uma liberdade de discurso imagético ao seu diretor. São os casos clássicos da nouvelle vague e de seu irmão brasileiro, o cinema novo.

Lembre-se de que, nesses casos, não prevalece conceito de indústria, à qual o roteirista profissional estabelece uma relação íntima.

Contudo, nos referimos aqui a um cinema experimental. Em sua própria denominação encontramos razões para se abandonar as "limitações" do roteiro cinematográfico. Tudo bem. O cinema também existe para isso: viajar, testar, provocar, encantar...

Mas qual seria – se é que há – o segredo do empirismo no script? Ilustro:

Durante minha adolescência, viciei-me em patinar. Começou como moda entre os amigos. Tínhamos péssimos rollerblades e mal saíamos do lugar nos primeiros dias. Andávamos numa área pequena em terreno plano e adequado à prática. Com o passar do tempo, começamos a patinar no Parque da Cidade, em Brasília, então começamos a construir minirrampas, pular quebra-molas, pegar "rabeira" em caminhões e, eu, ficava cruzando a cidade a bordo do meu Oxygen, até passar a fazer tímidas manobras em half-pipes.

Entenderam?

Na prática do roteirista, não há espaço para experimentação pela experimentação. É preciso desvendar os mistérios do screenwriting antes. Praticar o básico, conhecer as regras e dominar os conceitos antes de sair por aí fazendo manobras.